Velvet Goldmine: a criação de um deus do rock

Sem dúvida, com os novos estilos e políticas de identidade que ajudou a lançar, o glam rock moldou o mundo contemporâneo. Essa tendência musical pós-hippie dos anos de 1971 a 1975 vem da fusão do rock underground estadunidense com o tom ácido inegavelmente britânico. Sua estrela maior foi o músico David Bowie, cujo personagem alienígena, andrógino e bissexual Ziggy Stardust teve inspiração no imaginário da ficção científica. Retomando essa fase da carreira de Bowie, Velvet Goldmine (1998) apela à nostalgia e revisita um capítulo à parte da história. Assim, com várias referências à mitologia grega e à cultura audiovisual, retrata o glam como fenômeno da cultura de massas.

Temas e referências

O nome Velvet Goldmine vem de um single “lado-B”, da reedição do álbum Space Oddity de Bowie, a quem o diretor Todd Haynes quis homenagear. Essa é a única referência direta ao músico, já que ele, por questões de direito de uso de imagem, não aparece ou sequer é mencionado. Mas as referências à sua vida e obra abundam no filme, que diz muito sobre seu papel para o glam e para a cultura pop. Podemos citar os temas da ficção científica, o personagem alien subversivo, seus parceiros e desafetos, a bissexualidade, a saída de cena ousada e apoteótica, bem como a microcultura de fãs.

Audacioso, Velvet Goldmine divide opiniões desde o seu lançamento. As críticas negativas devem-se à sua estrutura complexa e, sobretudo, à falta de compromisso com a biografia de Bowie e com a cena do glam rock. Em contraste, há quem valorize a riqueza temática e a variedade de referências. Nesse sentido, é um filme de muitas camadas que ajuda a repensar o artista, o glam, o culto à celebridade, a vida e a morte. Além disso, recorre ao passado a fim de refletir sobre o tempo, de forma nostálgica.

O enredo de Velvet Goldmine e o apelo à nostalgia

Numa investigação à la Cidadão Kane (1941), o jornalista Arthur Stuart (Christian Bale) tenta descobrir o que houve com o músico Brian Slade (Jonathan Rhys Meyers). O astro saiu de cena em 1974, quando um tiro o abateu no palco, mas Stuart acredita que tudo não passou de uma farsa.

O filme apela à nostalgia. Dez anos depois da suposta morte de Slade, as provas que Stuart reúne trazem à tona imagens e memórias dos anos 70. A investigação, portanto, anima e revive o passado. Mas esse é um passado redimensionado, ou seja, história alternativa que traz o espírito do tempo. Isso é possível em virtude da direção de arte, dos figurinos, da trilha sonora, dos efeitos visuais etc. Nesse sentido, ao recriar a cena do glam rock, o filme se torna um arquivo de imagens, sons, referências, atitudes e fatos históricos.

Stuart revisita com nostalgia momentos da sua juventude. Afinal, foi a cena cultural do glam rock, com sua legião de astros gays e bissexuais, que o ajudou a sair do armário. A sua perspectiva para o fenômeno cultural é, portanto, a de fã. Assim sendo, suas memórias vão se mesclando às dos entrevistados, como o primeiro empresário de Brian Slade, Cecil (Michael Feast), e a ex-esposa do astro, Mandy (Toni Collete). Seus relatos pintam um quadro da cultura jovem britânica dos anos 70, com seus shows de rock, moda extravagante, crítica musical e cultura gay.

A cena cultural do glam rock

A fama de Brian Slade deve-se, sobretudo, à criação de seu alter ego alienígena Maxwell Demon. Não surpreendentemente, esse personagem excêntrico e narcisista é uma versão alternativa de Ziggy Stardust, com seus trajes brilhantes e plataformas de vinil . Além dos figurinos, as imagens do astro ficcional no camarim nos remetem ao filme-registro do último show de Bowie como Ziggy.

Parece que a juventude de hoje tem um novo jeito com a chamada “liberação sexual” da “geração paz e amor”. Os cachos longos e as miçangas dão espaço à maquiagem purpurinada, salto plataforma e um novo gosto por glamour, nostalgia e simples ousadia. E, liderando este estouro, está ninguém menos que a estrela pop Brian Slade, cujos trejeitos estilísticos abriram portas a novos artistas performáticos (…). Graças a Slade, a juventude de hoje canta ritmos completamente diferentes.

O ano é 1974, e “as ruas (…) estão brilhantes com maquiagens e vestidos de lantejoulas, enquanto meninos e meninas da atual moda glam rock homenageiam seu santo patrono, a estrela pop Brian Slade e sua persona futurista Maxwell Demon”. A narração é de um repórter da BBC em cenas de falso documentário, no início do filme. Em Londres, multidões se reúnem às portas do Teatro Lyceum.

A estrutura dos mitos

Assim como o jornalista de Cidadão Kane, Stuart vasculha o passado em busca de provas que possam desmistificar o astro supostamente morto. Ambos os filmes, nesse sentido, tratam do homem que se torna lenda viva. Mas a figura de Brian Slade é estranhamente enigmática.

A construção de Slade é a jornada do herói do rock. O astro ficcional surge como figura-chave do glam por várias razões: espírito subversivo, senso de estilo e bissexualidade. Tudo isso era matéria-prima para suas canções. Seu alter ego Maxwell Demon, assim como o Ziggy Stardust de Bowie, escancara o lado efêmero do estrelato. Em outras palavras, mostra como os fãs devoram um artista quando ele se converte em objeto de consumo. É, portanto, representação da fábula de Ícaro e da cultura do excesso.

Pela mescla e sobreposição de várias narrativas, Velvet Goldmine tem a estrutura dos mitos, cujas histórias épicas, sagradas e não-lineares ainda moldam a produção cultural. Em outras palavras, o filme se desenrola como um sonho, pois não segue a lógica das cinebiografias tradicionais e traz elementos de outras obras – documentários musicais, videoclipes e, principalmente, de Cidadão Kane.

As temporalidades de Velvet Goldmine

De acordo com Glenn D’Cruz, o tempo narrativo de Velvet Goldmine flutua entre o século XIX, o início dos anos 70 e os anos 80. Numa estrutura não-linear própria dos mitos, a vida dos personagens surge em flashback dos anos 50, 60 e 70. Conforme Welles demonstrou, e o historiador Peter Conrad destaca, a mescla de flashbacks com cenas que se passam no futuro é importante. Afinal, esse recurso confunde nossas expectativas quanto ao ponto exato em que as coisas ocorrem.

“Apesar do que está prestes a ver se tratar de uma obra de ficção, ainda assim deve ser tocada no volume máximo”. As linhas que abrem Velvet Godmine nos instruem a mergulhar na ficção. Em seguida, dão lugar ao céu noturno cheio de estrelas. No momento em que uma estrela cadente cruza a imagem, a narradora mítica afirma: “As histórias, como as ruínas antigas, são as ficções de impérios. Enquanto tudo esquecido está suspenso em reinos escuros do passado, sempre ameaçando retornar”. Estas palavras põem em xeque a autoridade da história oficial. Além disso, revelam um filme com o propósito de criar uma história dos esquecidos, preocupado em relembrar os pioneiros do glam no mito e da ficção científica. Enfim, o filme trata da construção de um deus do rock como ícone de adoração popular.

Velvet Goldmine como história alternativa

Velvet Goldmine retrata o glam rock enquanto fenômeno cultural. Com alusões a outras obras, relembra os antepassados dessa tendência ao mesmo tempo que aborda questões como identidade, memória e nostalgia. Em contraste com a história tradicional, o filme revisita o passado e cria, a partir dele, uma história alternativa. Sua estrutura narrativa, que vem dos mitos, borra as fronteiras entre fantasia e realidade, fato e ficção, passado, presente e futuro. Assim, constrói uma universo fantástico que repensa a sociedade e o mundo contemporâneo a partir do passado, sob um prisma queer.

Referências

“Para ser lido no volume máximo: a década de Bowie e o glam rock em Velvet Goldmine” (Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, 2017), por Lúcio Reis Filho.

“He’s not there: Velvet Goldmine and the specters of David Bowie”, de Glenn D’Cruz, em: Enchanting David Bowie: space/time/body/memory (2015).

Orson Welles: The Stories of His Life (2005), de Peter Conrad.

O homem que vendeu o mundo: David Bowie e os anos 70 (2014), de Peter Doggett.

Moonage daydream: the life and times of Ziggy Stardust (2002), por David Bowie e Mick Rock.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Velvet Goldmine: a criação de um deus do rock, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/velvet-goldmine-a-criacao-de-um-deus-do-rock/. Acesso em: 30/10/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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