A Forma da Água: um conto de fadas moderno

Indicado a 13 Oscars, A Forma da Água (2017) é um conto de fadas moderno. O filme se passa no auge da Guerra Fria, nos anos 1960 ainda com jeito de anos 1950, e prova como os opostos se atraem. Elisa (Sally Hawkins), a faxineira de um laboratório, descobre um monstro numa sala de segurança máxima, e se apaixona por ele. A mulher é muda e o monstro tem uma linguagem própria; por isso, interagem através de sinais. A conexão entre eles cresce dia após dia, até que eventualmente se apaixonam.

Toques de um clássico infanto-juvenil

A Forma da Água tem um toque de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, base para outro filme de del Toro, O Labirinto do Fauno (2006). A inspiração nos contos de fadas “não é acidental”, conforme declarou o diretor. Além disso, seus personagens devem muito aos heróis e vilões de clássicos do horror, sobretudo King Kong (1933) e O Monstro da Lagoa Negra (1954).

No entanto, o verdadeiro monstro não é a criatura, mas Strickland (Michael Shannon), o egocêntrico agente do governo. Personificação do privilégio branco dos Estados Unidos daquele tempo (e de hoje?), Strickland é um vilão aos moldes do explorador ganancioso, aquele que encontra grandeza ao matar o monstro. Um personagem típico dos filmes de aventura dos anos dourados.

O amor é fluido como a água…

Conforme explica o diretor Guillermo del Toro, o mito da união entre mulher e criatura é muito antigo e existe em várias culturas. “Seja Zeus assumindo outras formas na mitologia grega, ou qualquer deus que modifica seus traços na mitologia asiática, todo país tem essa história”.

Mas, em contraste com os mitos, é a mulher quem toma as rédeas. Assim, o filme derruba a convenção narrativa da criatura do sexo masculino que persegue a presa feminina (apenas para provar, no final, que possui bondade humana). “No meu filme, é a mulher quem seduz a criatura”, afirmou del Toro ao The Straits Times de Singapura. “Estou tentando mostrar que o amor é fluido como a água, e toma a forma de tudo o que precisar”.

… mas a água pode estar fora do alcance

Giles (Richard Jenkins), o vizinho de Elisa, faz referência direta à mitologia grega. Ao observar uma vitrine com tortas suculentas, ele diz à jovem: “Tântalo nunca conseguia escapar da morte. A fruta nos arbustos sempre esteve fora do alcance. A água no riacho sempre recuou quando ele tentava bebê-la. É por isso que dizemos coisas como look at those tantalizing pies. A tradução para esta última frase é “olhe para essas tortas tentadoras”, já que o adjetivo em português perde seu sentido e sua relação com a mitologia.

De acordo com o The Concise Oxford Dictionary of English Etymology (2003) e com o A New Dictionary of Eponyms (2002), o adjetivo tantalizing vem do verbo to tantalize. Ou seja, aquilo que atormenta por ser extremamente tentador e impossível de se alcançar. A palavra tem origem no latim Tantalus e no grego Tantalos. Deriva, portanto, do personagem mítico de mesmo nome, o qual conheceremos a seguir.

Quem foi Tântalo na mitologia?

Na mitologia grega, Tântalo é filho de Zeus e rei da Frígia. O que fez dele célebre nas antigas histórias foi o castigo que sofreu no Hades, cuja descrição aparece na Odisseia.

De acordo com a lenda, os deuses convidaram Tântalo para seus banquetes. Orgulhoso pela grande honra, ele revelou aos homens os segredos divinos aos quais teve acesso nesses jantares. A fome e a sede eternas foram seu castigo, pelas mãos dos deuses. Mergulhado na água até o pescoço, Tântalo não podia beber, porque o líquido fugia sempre que tentava. Sobre a sua cabela pendia um ramo cheio de frutos, mas, se ele levantava o braço, o ramo erguia-se bruscamente fugindo de seu alcance.

Transportado para os Estados Unidos dos anos 1960, Tântalo funciona como metáfora social. O mito faz analogia com os principais personagens do filme, como Elisa, Giles, Strickland, Zelda (Octavia Spencer) e a própria criatura. Quais analogias você identifica?

Referências

The Shape Of Water is a woman-monster myth, says director Guillermo del Toro (The Straits Times, 2018).

Stream the Movies That Influenced ‘The Shape of Water’

The Concise Oxford Dictionary of English Etymology (2003).

A New Dictionary of Eponyms (2002).

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Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. A Forma da Água: um conto de fadas moderno, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/a-forma-da-agua-ou-como-nao-deixa-la-escapar/. Acesso em: 04/12/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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