David Bowie: reinventando a fábula de Ícaro

David Bowie (1947-2016) é, sem dúvida, um dos nomes mais influentes e aclamados dos últimos cinquenta anos. Afinal, criou tendências não apenas na música, como também na literatura, nas artes visuais, no entretenimento, na moda e no cinema. Nelson Motta o definiu como “um homem da Renascença no século XX”, o que se deve, certamente, à sua erudição e ao envolvimento com as mais diversas áreas. Assim, o artista britânico ultrapassou fronteiras de gênero, forma e identidade, deixando para a cultura contemporânea um legado espetacular.

O processo criativo de Bowie era muito pessoal, porque contou com padrões culturais variados que deram forma à sua sensibilidade artística. A mitologia grega, por exemplo, ocupa um lugar especial em seu repertório, pois há muitas referências a ela em suas canções. A Orfeu, o maior dos cantores; às musas, que inspiravam os artistas; a Narciso, vaidoso e orgulhoso; a Prometeu, que deu o fogo à humanidade; às Sirenes, cujo canto hipnótico era divinamente belo; aos faunos, representações da sexualidade; e aos deuses, que eram sábios, imortais e capazes de mudar de forma. De todos esses temas, no entanto, um dos mais presentes nas suas composições é a fábula de Ícaro.

A tragédia de Major Tom

Ao longo de sua carreira, David Bowie criou personagens icônicos, trágicos e condenados, que desafiaram seus próprios limites e sucumbiram em razão disso. Seu primeiro sucesso comercial, a canção “Space Oddity” (1969) conta a história do astronauta Major Tom. Ele vai ao espaço e anseia dar um grande salto para a humanidade, mas acaba à deriva em sua cápsula, incapaz de retornar.

No fim dos anos 1960, em contraste com o otimismo da corrida espacial, Space Oddity evoca o isolamento e a insatisfação com a realidade. “O planeta Terra é azul, e não há nada que eu possa fazer”, diz o astronauta – no original: “Planet Earth is blue, and there’s nothing I can do”. (O termo “blue” não só alude à cor do planeta Terra, como também denota tristeza). Em outras palavras, o planeta Terra é triste e não há nada que possa fazer a respeito disso. O Major Tom é uma figura trágica e a Terra, vista à distância, não passa de um pontinho azul na vastidão fria e escura do cosmos.

Além disso, a tragédia do Major Tom também evoca a fábula de Ícaro. Personagem da mitologia grega, Ícaro era filho do inventor Dédalo, com quem foi aprisionado na ilha de Creta. Seu pai, então, construiu um par de asas para que escapassem, mas advertiu o filho que não voasse muito alto. No entanto, orgulhoso e entusiasmado, Ícaro ignorou o conselho e chegou cada vez mais perto do Sol. Por fim, a cera das suas asas derreteu, elas se desmancharam e o garoto caiu no mar.

A queda de Ziggy Stardust

Posteriormente, Bowie criou o astro do rock arquetípico, que ascende e depois cai (assim como tantos astros reais, que morreram cedo). O título de seu quinto álbum já anunciava o fim trágico desse personagem: The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972). Na capa, o artista veste um macacão azul futurista e botas roxas, como se tivesse acabado de descer da nave num sombrio beco londrino. O alienígena Ziggy Stardust vem à Terra como um redentor, mas cai vítima do próprio ego, bem como da tríade sexo, drogas e rock ‘n’ roll. Ascensão e queda é a história de Ícaro, que descobriu, à custa da própria vida, que o orgulho pode levar a uma queda fatal.

De acordo com o documentário Moonage Daydream (2022), Ziggy surgiu de um movimento inconsciente. Assim como os deuses gregos, que podiam gerar a si mesmos, o astro alienígena estava muito acima dos meros mortais. Devido à sua origem andrógina, ele vivia fora das normas da sociedade, isto é, incorporava atributos masculinos e femininos, era gay e heterossexual, humano e extraterrestre. Logo que surgiu, tornou-se ponto de referência para uma nova geração de jovens rebeldes e inconformados. Bowie se inspirou no imaginário da ficção científica para criar o messias do rock, seu mais icônico personagem. Este, por sua vez, inspirou o primeiro grande papel de Bowie no cinema.

O papel definidor de Bowie

Assim como Ziggy, Thomas Jerome Newton vem do espaço com uma missão igualmente messiânica. Ele quer água para salvar seu povo, já que seu mundo tornou-se inabitável. No planeta azul, o alienígena cria laços afetivos, mas é um estranho em uma terra estranha. Frustrado, logo sente o peso do exílio e sua esperança se converte em desespero; então se torna um alcoólatra, assombrado por memórias e demônios pessoais. Newton é o protagonista de O Homem que Caiu na Terra (1976), adaptação do livro homônimo de Walter Tevis. Foi o David Bowie de meados dos anos 70 que deu vida a ele, nesse que foi seu papel definidor, pois, nas palavras do crítico Mark Kermode, “resume à perfeição o que ele é (…), um homem espacial que se move num continuum temporal diferente”.

O título – do livro e do filmerefere-se sobretudo ao destino de Newton, mais do que à sua viagem espacial. Na Terra, os vícios e a humanização levam inegavelmente à sua queda. No fim da história, Newton é um espectro quase afogado; mas, em contraste com Ícaro, ele afunda em álcool, não em água. Nesse sentido, ele se aproxima dos personagens de Bowie, que têm caráter liminar e um senso de inadequação com a realidade. Afinal, são todos estranhos, transgressores e desviantes. Aliás, temas como a loucura, as drogas, a solidão, a alienação e o isolamento são constantes na sua obra.

O crepúsculo dos deuses do rock

A morte de Bowie em 2016 marca o crepúsculo dos deuses do rock, conforme escreveu o crítico Neil McCormick para o The Telegraph em 17 de janeiro daquele ano. É o momento histórico no qual começamos a nos despedir dos arquétipos de uma época, cuja arte, espírito e estilo foram definidos pelos valores autocentrados e enérgicos da juventude. A era do classic rock chegou ao fim, e a morte de um dos seus principais nomes nos força a contemplar e repensar o sentido das nossas próprias vidas.

Através da sua arte, Bowie promoveu aberturas em nossas práticas sociais e culturais, definiu tendências estéticas e influenciou gerações. No fim, celebrou a própria morte como performance, fazendo a despedida mais elegante e gerenciada de toda a história da música pop. A música Lazarus, do álbum Blackstar (2016), marca um retorno ao seu primeiro personagem de destaque no cinema; o ciclo criativo então se fecha. Depois da queda, a apoteose. O mar onde Ícaro morreu ganhou seu nome, e sua história é lembrada até hoje. Por sua vez, o artista sai de cena, mas deixa um legado extraordinário.

Referências

Moonage Daydream (BMG; Public Road Productions, 2022), dir. Brett Morgen.

El club de lectura de David Bowie (2021), de John O’Connell.

David Bowie: O Homem que Caiu na Tela (2020), por Lúcio Reis Filho e Laura Cánepa (orgs.).

Classical Mythology: A Guide to the Mythical World of the Greeks and Romans (2020), de William Hansen.

“Bowie’s death marks the Twilight of the Rock Gods” (The Telegraph, 17/01/2016), por Neil McCormick. Em: https://www.telegraph.co.uk/music/artists/bowies-death-marks-the-twilight-of-the-rock-gods/.

“Sobre David Bowie” (catálogo Lazarus, de David Bowie + Enda Walsh), por Nelson Motta.

David Bowie é o assunto (2014), por Ana Martini e Raquel Toledo (coords.).

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. David Bowie: reinventando a fábula de Ícaro, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/david-bowie-reinventando-a-fabula-de-icaro/. Acesso em: 29/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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