Quem são os Tao Tei de A Grande Muralha?

A Grande Muralha (2016) abre com uma panorâmica da Muralha da China, uma das sete maravilhas do mundo moderno. De acordo com os textos explicativos, ela “permaneceu durante séculos como uma das maravilhas mais duradouras da humanidade (…). Ela protegia [o império chinês] de muitas ameaças. Algumas são conhecidas. Algumas são lendas. Esta é uma das lendas”. O filme segue os mercenários europeus William (Matt Damon) e Tovar (Pedro Pascal), que buscam pólvora, mas acabam se envolvendo na defesa da China contra uma horda dos chamados “Tao Tei” ou Taotie. Conforme vamos descobrir, esses monstros vêm das lendas chinesas.

Os Tao Tei na antiga arte do bronze

A ideia para os monstros Tao Tei de A Grande Muralha vem do termo t’ao-t’ieh ou taotie, cujas origens estão na mitologia chinesa e nos elementos decorativos da arte do bronze.

Dos vários artefatos dessa civilização milenar, aqueles feitos em bronze sempre despertaram grande interesse nos arqueólogos pelo seu design único. Para as elites das eras Shang (c. 1600 – 1046 a.C.) e Chou (c. 1046 – 256 a.C.), os vasos desse metal eram objetos rituais por excelência, pois serviam para guardar alimento para as cerimônias religiosas. Mas não se sabe exatamente como os vasos eram usados, já que as cerimônias da era Shang continuam sendo um mistério.

Acredita-se que as cerimônias tinham o objetivo de nutrir os espíritos ancestrais dos clãs. As origens dessa prática vêm da crença pré-histórica de que os espíritos exigiam animais recém sacrificados — eles precisariam, portanto, de sangue para se alimentar. O caráter ritualístico era fundamental para quem encomendava e usava tais vasos, que tinham sempre grande valor, pois os rituais eram oferendas de alimentos. Do ponto de vista do design e do estilo, a decoração dos vasos também era importante.

A máscara de Taotie ou monstro

De fato, os antigos designs em bronze são fascinantes. Padrão característico dos vasos Shang é a máscara de taotie ou monstro, face dividida ao meio e esticada no metal como se tivesse dois perfis, que, juntos, formam um único rosto. Há muitos tipos de taotie, que variam de acordo com a época, a região e as várias técnicas de artesanato. Eles decoravam não apenas vasos, como também outras peças. O corpo do taotie lembra o desenho de um animal dividido ao meio. Em geral, a máscara vinha com chifres, mas não tinha mandíbula. Veja o exemplo:

Decoração de cavalos na forma de máscara taotie, peça arqueológica da dinastia Shang (1600-1050 a.C.) que lembra a face de um monstro feita em bronze, oxidada pela ação do tempo.
Decoração de cavalos na forma de máscara taotie, c. 1300-1050 a.C. China, dinastia Shang.
Diagrama em preto e branco de máscara taotie, com a definição de cada uma das partes da peça.
Diagrama de Edith Watts, com design de Sue Koch.

Pela semelhança com um dragão, os chineses ligaram o taotie ao lung. Este termo, que é uma tradução de “dragão”, ganharia posteriormente o significado de criatura fantástica. Na cultura chinesa tardia, o lung era um poderoso espírito masculino da fertilidade. Com chifres, pernas e garras, apesar dos traços de serpente, ele vivia nas lagoas no inverno, subia ao céu nas tempestades da primavera e trazia a chuva. Embora seja complexo e cheio de significados, o design do taotie evoca a simbologia do lung.

Das origens ao cinema

O Tao Tei ou taotie está nos vasos de bronze mais antigos, mas sua origem ainda é um mistério. A princípio, acreditou-se que seria a imagem de um animal sacrificado (um tigre ou um crocodilo, por exemplo). Esta e outras hipóteses, contudo, foram refutadas. Afinal, pode ser um erro pensar que os artesãos da época teriam em mente um significado tão preciso.

Além disso, no antigo texto Lü-shih ch’un-ch’iu (do século III a.C.) o termo t’ao-t’ieh significa “glutão”, o que não corresponde ao design padrão dos vasos. O que parece claro é a obsessão dos artistas da era Shang pelas formas de animais, fossem eles reais ou imaginários. Em contraste, a adaptação do taotie para as telas é original, com dois pés na tradição e os demais na fábrica de monstros de Hollywood.

Do tórax robusto saem membros frontais longos e fortes, como os de um gorila. Dele, brota uma cara de caveira quase humana, com rugas de metal retorcido. Este é o mesmo padrão decorativo que sobe pelas costas. As órbitas vazias são sinais de uma estranha evolução que fez os olhos se instalarem nos ombros. Aí colocados, surgem dois perfis opostos. As “duas faces” se voltam para o crânio com a boca cheia de dentes (sim, eles têm mandíbula). A cintura e os membros traseiros são finos, de predador. A pele é verde feito o bronze oxidado (a mesma cor da Estátua da Liberdade). Portanto, o visual grotesco dos Tao Tei de A Grande Muralha deve muito aos antigos vasos chineses.

A dinâmica dos Tao Tei

Conforme revela um flashback, os Tao Tei chegaram ao planeta 2.000 anos antes da história que vemos na tela. Similarmente aos monstros cósmicos de H. G. Wells ou H. P. Lovecraft, eles vieram do espaço, num asteroide verde que caiu no monte Gouwu. Lá, vivem em estado de hibernação. Isso porque, como todos os anfíbios (assumindo sua ancestralidade anfíbia), a conservação de energia é crucial para a sua existência. Portanto, passam a maior parte do tempo imóveis e planejam o gasto de energia. Isso ocorre, em geral, a cada 60 anos, no momento em que despertam para se alimentar.

Híbridos de alien com o ghoul do folclore árabe, os Tao Tei de A Grande Muralha são glutões de fome insaciável. Seus bandos agem feito um enxame que devora tudo pelo caminho. A maior parte da sua locomoção é em quatro patas e baixa velocidade. Mas, como seus primos terrestres, têm explosões de energia que permitem movimentos altamente dinâmicos e espetaculares. Eles também podem se erguer nos membros traseiros, para visibilidade, caça e maior consciência sensorial.

Os Tao Tei caçam as suas presas em bandos, usando dinâmicas de grupo muito semelhantes às dos grandes felinos. Quando a presa está suficientemente fraca, um espécime grande, possivelmente dos mais inteligentes, mira na garganta. Esse é, portanto, o alvo. A princípio, a intenção não é matar, mas retardar e esgotar a presa. Em seguida, predadores menores e mais ágeis a flanqueiam e cercam, barrando as rotas de fuga e bloqueando apoio em potencial.

Conclusão

Enfim, é a visão de Hollywood, com sua propensão de criar mitologias fantásticas, que salta à vista. Assim sendo, A Grande Muralha cria a sua própria lenda ao fazer dos Tao Tei ou Taotie monstros “enviados pelo céu para punir a ganância do homem”. Para os chineses, de fato, os eventos no céu tinham paralelo com os eventos na Terra. Por exemplo, se um cometa surgisse de repente, era certo que algo importante e inesperado estava prestes a ocorrer. Talvez uma grande batalha. Ou uma invasão de seres do espaço?

Referências

The Meaning of the ‘T’ao-T’ieh’, de Jordan Paper. Em: History of Religions (1978, p. 18-41).

Asia for Educators – The Great Bronze Age of China (The Metropolitan Museum of Art, New York). Em: http://afe.easia.columbia.edu/special/china_4000bce_bronze.htm

The chinese sky (The International Dunhuang Project). Em: http://idpuk.blogspot.com/2013/05/research-and-resources-on-chinese.html.

The Dunhuang Chinese Sky: A Comprehensive Study of the Oldest Known Star Atlas. Em: https://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/0906/0906.3034.pdf.

Shang dynasty ritual bronze vessels. Em: https://www.khanacademy.org/humanities/art-asia/imperial-china/shang-dynasty/a/shang-dynasty-ritual-bronze-vessels.

The Great WallPortfólio de Christian Pearce (Senior Concept Artist at Weta Workshop).

Leia também: King Ghidorah e o dragão de três cabeças na mitologia.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Quem são os Tao Tei de A Grande Muralha?, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/quem-sao-os-tao-tei-de-a-grande-muralha/. Acesso em: 28/11/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

4 respostas

  1. Com a grafia Taotie, eles estão aparecendo na recente série do Shang-Chi, escrita pelo Gene Luen Yang, Yang começou com uma minissérie em 2020, no ano passado, junto com o filme, lançaram uma nova série, Yang tem pego elementos do filme, os Taotie aparecem como uma das criaturas de Ta Lo, até mesmo teve uma máscara.
    https://marvel.fandom.com/wiki/Taotie

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