King Ghidorah e o dragão de três cabeças na mitologia

Godzilla II: Rei dos Monstros (2019) faz várias alusões aos monstros da mitologia e das lendas de navegação. Novo título da franquia blockbuster MonsterVerse, o filme é um cross-over dos monstros gigantes da companhia japonesa Toho. O principal deles é, sem dúvida, Godzilla. Criado por Ishirō Honda em 1954, o enorme réptil filho da radiação deu base para o gênero dos filmes de daikaiju (monstros gigantes). Seu grande rival é King Ghidorah, dragão de três cabeças que saiu diretamente da mitologia. Em seguida, vamos descobrir os seres lendários por trás da criação desse monstro cruel.

Da Toho ao MonsterVerse

King Ghidorah é mais um produto da fábrica de monstros de Ishirō Honda. O poderoso dragão de três cabeças estreou em Ghidrah, O Monstro Tricéfalo (1964) — sem a letra “o”, no Brasil e em outros países. Seu nome une “Kingu” (rei em japonês) e “Ghidorah”, que vem de Hidora (como se escreve e fala “Hidra” nessa língua). Isso porque, segundo Tomoyuki Tanaka, a ideia para o monstro veio de um desenho da Hidra de Lerna, num livro sobre mitos gregos. O produtor também cita o dragão do folclore japonês Yamata no Orochi. Um dos criadores de Godzilla nos anos 1950, Tanaka gostou da ideia de pôr sua principal criação contra um dragão de muitas cabeças. Mas para ele sete ou oito cabeças seria um exagero, por isso reduziu o número para três.

Desde que surgiu em 1964, Ghidorah estrelou em nada menos que 8 produções: A Guerra dos Monstros (1965), O Despertar dos Monstros (1968), Godzilla, O Rei dos Monstros (1972), Godzilla Contra o Monstro do Mal (1991), Mosura 3: Kingu Gidora raishu (1998), Gojira, Mosura, Kingu Gidorâ: Daikaijû sôkôgeki (2001), Godzilla: O Devorador de Planetas (2018) e Godzilla II: Rei dos Monstros. Este último faz parte do MonsterVerse, franquia norte-americana da Legendary Entertainment que reúne King Kong e os grandes monstros da Toho.

As origens míticas do dragão de três cabeças

Além de ser um dragão de três cabeças, sua marca registrada, Ghidorah é bípede e sem braços, tem escamas douradas, um par de asas em leque e duas caudas. Sua imagem não sofreu grandes mudanças ao longo do tempo, o que não podemos dizer de suas origens. Nos filmes da franquia, ele aparece ora como um dragão extraterrestre ou monstro geneticamente modificado, ora como protetor do Japão ou deus interdimensional. É, sobretudo, um vilão e o maior dos inimigos de Godzilla. No MonsterVerse, é um predador que vem de outro mundo com o propósito de reinar sobre os demais monstros. Ele é, portanto, uma ameaça à ordem natural e à vida na Terra.

Além disso, em contraste com as suas primeiras versões, o dragão de três cabeças têm três personalidades distintas. A cabeça do meio é dominante e mais cruel; a direita tem sede de combate; e a esquerda, por sua vez, é mais dócil e curiosa. No filme, elas ganham os nomes de Ichi, Ni e San (“Um”, “Dois” e “Três”, em japonês), respectivamente.

Na trama, há sinais de Ghidorah em várias tradições – da arte rupestre às ruínas de antigas civilizações. Assim, o filme cria para o dragão de três cabeças uma história pregressa dentro do MonsterVerse, pondo-o lado a lado a outros seres lendários. Decerto, embora esse monstro seja uma criação do cinema, veremos que os répteis de muitas cabeças existem no imaginário e na mitologia mundial.

Os dragões de muitas cabeças na mitologia

Ainda que sejam raros na natureza, animais de muitas cabeças (ou policéfalos) são comuns nas lendas. É o caso de Cérbero, o cão dos Infernos da mitologia grega, por exemplo. Mas a inspiração para Ghidorah veio sobretudo de dois seres lendários: a Hidra, igualmente grega, e o Orochi japonês. Vamos conhecer melhor esses monstros, que pertencem ao rol dos dragões de muitas cabeças da mitologia:

Orochi

Yamata no Orochi, ou apenas Orochi, é uma serpente com oito cabeças e oito caudas, cujo nome significa “cobra de oito bifurcações”. Conforme se diz na mitologia japonesa, quem venceu esse monstro foi Susanoo-no-Mikito, o deus do mar e das tempestades.

Banido da Planície do Céu Superior, o kami Susanoo desceu ao pico de Torikami, nas cabeceiras do rio Hi, na província de Izumo. Lá, encontrou um casal de idosos, Ashinazuchi e Tenazuchi, que chorava por sua filha Inadahime. Quando Susanoo perguntou o motivo de suas lágrimas, o casal respondeu que Inadahime seria comida por uma cobra enorme, com oito cabeças e oito caudas, olhos vermelhos como uma planta “lanterna chinesa” e um comprimento que abrangia oito picos e oito vales. Simpatizando com a dor da família, Susanoo então embebedou a serpente com vinho de arroz e a matou. Dentro da cauda da serpente, descobriu a espada Kusanagi (“Cortador de grama”), que levou à Amaterasu, a deusa do sol.

De acordo com o verbete Yamata no orochi, na Encyclopedia of Shinto.

Hidra

Nos mitos gregos, a Hidra de Lerna é uma serpente com muitas cabeças. O número varia de cinco a seis até cem, conforme os autores. Alguns diziam que as cabeças eram humanas. O hálito desse monstro era mortal para quem se aproximasse, mesmo enquanto dormia. Para vencê-lo, Hércules usou flechas flamejantes e uma harpe (sabre curvo) para cortar suas cabeças. O herói teve a ajuda de seu sobrinho Iolau, pois as cabeças cresciam novamente após serem cortadas. Para deter a regeneração, Hércules pediu a Iolau que fosse queimando as feridas, tornando assim as carnes incapazes de renascer. Dizia-se que a cabeça do meio era imortal, por isso o herói a cortou e enterrou, colocando sobre ela uma enorme rocha.

Assim como a Hidra, o dragão de três cabeças Ghidorah é capaz de se regenerar. Também podemos supor, pela cena pós-créditos de Godzilla II, que a cabeça do meio é imortal.

Referências

Encyclopedia of Shinto, em: http://eos.kokugakuin.ac.jp/modules/xwords/.

Dicionário de mitologia grega e romana (2011), de Pierre Grimal.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. King Ghidorah e o dragão de três cabeças na mitologia, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/king-ghidorah-e-o-dragao-de-tres-cabecas-na-mitologia/. Acesso em: 28/10/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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