Professor Polvo: lições dos amigos de oito patas

Indicado ao Oscar de melhor documentário em 2021, Professor Polvo (My Octopus Teacher, 2020) é tocante e tem uma narrativa singular. O filme segue os passos do cineasta e explorador marinho Craig Foster na costa da África do Sul. Em princípio, Foster acha no fundo do mar uma forma estranha, coberta de pedras e conchas, que ele descobre ser um polvo. A longo de um ano, o cineasta cria forte vínculo com essa intrigante criatura, enquanto tenta desvendar os mistérios de seu mundo submarino. Até que os limites entre homem e animal enfim se diluem. O filme ajuda a pensar como os polvos, em virtude de suas feições, viraram monstros marinhos e alienígenas, nos mitos e na ficção científica.

Os misteriosos polvos de outro mundo

No fundo do mar, Foster se vê num mundo totalmente diferente do nosso, com florestas de algas e fauna exótica. Essa é a mesma relação que o cineasta alemão Werner Herzog faz no documentário Encontros no Fim do Mundo (2007). Os seres subaquáticos são estranhos, e lembram muito os monstros da ficção científica. De todos, no entanto, é o polvo que mais chama a atenção. “Alguns dizem que o polvo parece um alienígena”, reflete ele. De fato, em muitos filmes do gênero os alienígenas têm forma de cefalópodes. É o caso de A Chegada (2016) e da raça dos Quarren em Star Wars, entre outros exemplos. Mas essa tradição vem da literatura. Em “O Chamado de Cthulhu” (1926), H. P. Lovecraft descreve seu mais famoso monstro como híbrido de polvo, dragão e humano.

Em seguida, Foster nota sua inteligência (fora do comum), destreza e capacidade de adaptação, e criatividade para driblar predadores. “Ele sonha? Se sim, com o que sonha?”, pergunta-se o cineasta. “Em sua casa em R’lyeh, Cthulhu, morto, espera sonhando”, talvez respondesse Lovecraft. Decerto, depois de H. G. Wells em seu Guerra dos Mundos (1898), foi o escritor americano quem mais popularizou o polvo na ficção científica. Eventualmente, o cineasta ganha a confiança do polvo e cria com ele um laço raramente visto entre homem e animal. Esse é o aspecto mais tocante do filme. Além disso, Foster aprende uma lição valiosa sobre a vida e a preservação das espécies. Essa é a lição de Professor Polvo.

O polvo na mitologia

Vasto e misterioso como o espaço sideral, o oceano virou palco para os monstros da imaginação. Com efeito, é um mundo alienígena cheio de vida desconhecida, ora hostil, ora benévola. Os monstros marinhos da literatura vêm dos mitos e do folclore, das histórias de serpentes, dragões e outros répteis fantásticos. Tais histórias eram comuns antes da ciência provar que baleias, tubarões e lulas gigantes de fato existiam. Na literatura e no cinema, sobretudo, esses monstros surgem como seres violentos e cruéis, sejam répteis, anfíbios, moluscos ou mamíferos.

Monstros marinhos existem no imaginário de várias culturas. Nas lendas dos navegadores, eles eventualmente causam tsunamis, terremotos e o sumiço de barcos. Na mitologia grega, Hércules e Perseu lutam contra monstros desse tipo, bem como Odisseu, que enfrentou Cila e Caríbdis. Nos mitos nórdicos, a Jörmungandr é a serpente do mundo. No Talmut hebraico, há o Leviatã; na Bíblia, a baleia de Jonas. Tais personagens assombraram o imaginário ao longo do tempo.

O Kraken na literatura

De todos os monstros marinhos, o que mais lembra um polvo é certamente o Kraken, cefalópode gigante que surgiu no folclore e ganhou as páginas da literatura. Em 1870, o escritor francês Júlio Verne publicou 20.000 léguas submarinas, história do capitão Nemo, que constrói o submarino “Nautilus”. O nome desse veículo vem de um cefalópode que usa sua concha assim como um submarino usa seus tanques de mergulho. O Nautilus pode aumentar e diminuir sua profundidade alterando a pressão do gás nas suas câmaras. É assim que funcionam os submarinos modernos, que ainda não eram conhecidos no momento em que Verne escreveu seu livro. O primeiro submarino nuclear da Marinha dos Estados Unidos também recebeu o nome de Nautilus, em homenagem ao seu famoso predecessor fictício.

Nas lendas, bem como na literatura e nos filmes, o Kraken dorme nas profundezas até que o despertam e ele e enfim se levanta, causando caos e destruição. Em geral, ele é hostil com os humanos, principalmente nas histórias de horror. Conta-se que o Kraken, com seus tentáculos longos e fortes, era capaz de afundar os navios nos mares da Noruega. Essa fábula era muito comum nos tempos das grandes navegações, pois explicavam o porquê de certos aventureiros irem, mas nunca voltarem.

A lição do Professor Polvo

A representação do polvo como monstro ou força da natureza nasceu, inegavelmente, do medo do desconhecido. Em contraste com essa imagem, Professor Polvo lança luz nas profundezas e revela como esse animal é inteligente, sensível e habilidoso. Também fala da intervenção do homem na natureza, e da necessidade de cuidar do meio ambiente. Como resultado das suas pesquisas, Craig Foster lançou o Sea Change Project (clique aqui), cuja missão é preservar os oceanos e a vida marinha a partir da África do Sul. O filme premiado ajuda a saber mais sobre esse projeto.

Referências

Dicionário de mitologia grega e romana (2011), de Pierre Grimal.

“The Call of Cthulhu”, em The H. P. Lovecraft Archive (online): https://www.hplovecraft.com/writings/texts/fiction/cc.aspx.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Professor Polvo: lições dos amigos de oito patas, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/professor-polvo-e-uma-licao-sobre-os-amigos-octopodes/. Acesso em: 29/03/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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