Asteroides na mitologia: Herzog e as pedras do espaço

“Meteoritos sempre caíram em nosso planeta e os maiores mudaram paisagens inteiras. Contudo, também deixaram um impacto profundo nas culturas”.

Werner Herzog

Esta fala de Werner Herzog resume o seu novo documentário para a Apple TV+. Afinal, Fireball: Mitos, cometas e meteoros é um estudo sobre os asteroides e seus impactos culturais e físicos na Terra. O protagonista da vez é o vulcanologista britânico Clive Oppenheimer, da Universidade de Cambridge, que também assina o filme. Movidos pela curiosidade científica, ele e a equipe de Herzog viajam aos quatro cantos do mundo. Da Austrália ao México, investigam não apenas a ciência dos asteroides, bem como sua presença na cultura, na religião e nos mitos de vários povos. Com efeito, registram os ritos que evocam o poder e os símbolos dos corpos celestes. A seguir, saiba mais sobre a presença dos asteroides na mitologia, conforme o filme nos revela.

Oriente Médio

De acordo com a tradição islâmica, Deus mandou uma pedra do céu para mostrar onde Adão e Eva deveriam fazer um altar. O meteorito caiu onde posteriormente se ergueu a cidade sagrada de Meca, na Arábia Saudita. No centro da principal mesquita fica a Kaaba (“o Cubo”), que é um dos pontos mais sagrados do mundo muçulmano. Em seu canto oriental fica a Pedra Negra, que certamente é um meteorito. É proibido tocar na pedra, muito menos estudá-la, pois ela é uma das relíquias que os peregrinos reverenciam. Fazem isso desde os tempos pré-islâmicas, ou seja, desde pelo menos um milênio antes de o profeta Maomé fundar o islã (em 610 d.C.).

Índia

No Rajastão, ao norte da Índia, Herzog e Oppenheimer vão à cratera Ramgarh, com quatro quilômetros de diâmetro, onde templos hindus se erguem desde o século X. Após descrever a química dos meteoritos e sua relação com a origem da vida, a professora Nita Sahai explica tais construções. Uma delas, em honra a Shiva (deus da destruição) e Parvati (sua esposa, deusa da fertilidade), é um templo tântrico em tributo à Criação. Temos, aqui, dois princípios opostos. Isso porque, segundo a mitologia hindu, há ciclos de criação e de destruição do universo. Não surpreendentemente, o templo fica numa cratera de meteoro, cujo impacto pode destruir a vida, mas também criá-la a partir de moléculas orgânicas. Esta é outra conexão do asteroides com a mitologia.

México

Clive Oppenheimer e Werner Herzog.

Há cerca de 65 milhões de anos, um asteroide de 10 quilômetros de diâmetro caiu na região da atual cidade de Mérida. Esse foi o fim dos dinossauros. Por conseqüência, o evento mudou radicalmente o curso da vida na Terra. Na superfície, deixou um círculo de “cenotes”, poços naturais que são o eco geológico do grande impacto. Uma vez que não há lagos na Península de Iucatã, os poços atraíram os antigos maias.

Os maias tinham uma cultura avançada, isto é, com rituais complexos, sistema de escrita, matemática, astronomia e arquitetura monumental, com pirâmides e templos. Chegaram a construir um observatório astronômico, antes mesmo que houvessem telescópios. Assim, pela observação dos corpos celestes, puderam criar um calendário muito mais preciso do que qualquer outro do mesmo período. Esse povo, cuja cultura remonta a dois mil anos a.C., tinha profundo fascínio com a morte e o além. Em sua crença, havia nove inframundos e treze paraísos.

Pirâmide de Kukulcán.

Com o propósito de “ver” parte do inframundo, Herzog e sua equipe descem até as profundezas de um cenote, desconhecido até pouco tempo. Lá, a arqueóloga Fátima Tec Pool os conduz a uma das moradas do deus da chuva. Mas qual a relação do cenote com a mitologia indígena e a crenças dos maias? De acordo com Fátima, a noções de água e caverna se misturam, de modo que maias usavam tais espaços para seus ritos. Visto que as cavernas davam acesso ao inframundo, segundo a crença local, os maias deixavam restos mortais em seu interior. Além da clara relação com o simbolismo das águas, temos aqui outra marca dos asteroides na mitologia.

Austrália

Há mais de cem mil anos, uma cratera de quase um quilômetro de diâmetro se abriu no deserto. No mundo não aborígene, ela é obra de um meteorito — esta é a explicação científica. No entanto, para os ancestrais e os mais velhos, foi a Serpente do Arco-Íris que caiu lá. Um dos principais personagens das histórias dos aborígenes, a Serpente esteve sempre ligada aos cursos d’água, rios, riachos e fendas nas rochas. Além disso, tem conexão com a fertilidade e as relações sociais. É, portanto, fonte de toda a vida e a protetora da terra e do seu povo.

Embora a região pareça inóspita, os aborígenes sempre viveram em torno da cratera. Hoje, muitos vivem em pequenas comunidades, tendo na arte seu ganha-pão e na cratera um tema de suas coloridas pinturas. Isso mostra, decerto, como o fenômeno faz parte da memória cultural desse povo. A cratera é ponto de encontro da população. É um lugar especial onde as pessoas sentem a presença dos ancestrais e familiares, que olham por deles.

Ilhas do Pacífico

Cerca de 400 pessoas vivem na ilha de Mer, entre a Austrália e a Nova Guiné. Herzog se lembra de ter ouvido, na região, crenças sobre estrelas cadentes que levariam as almas dos mortos à nova vida, em outro lugar. Um dos anciãos da tribo, Doug Passi conta sobre as almas que viajam para o além na cauda do meteoro. De acordo com ele, fantasmas enviaram sua parente em um maier (meteoro ou estrela cadente). Seu nome era Gizou, e ela queimava feito o fogo. “Foi o que me contaram. Dizem que é verdade”, afirma o ancião. Tais crenças revelam, portanto, os asteroides na mitologia local, de um povo que não encara a morte como fim, mas como a jornada rumo a uma nova vida.

Estes e outros relatos são fascinantes. Dão sinais do “impacto profundo” dos asteroides na cultura humana (referência de Herzog ao filme de 1998) e mostram seus muitos significados. Assim sendo, cabe a nós interpretá-los.

Para saber mais, não deixe de ver o novo documentário de Werner Herzog!

Referência

O livro da mitologia (2018), de Philip Wilkinson.

Leia também

Cosmos (1980), de Carl Sagan.

A lenda das águas virtuosas: inventando uma tradição (sobre a mitologia e o simbolismo da água).

Quem são os Tao Tei de A Grande Muralha? (sobre os corpos celestes na mitologia asiática).

“Fireball: Visitors from Darker Worlds” [Review], em RogerEbert.com.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Asteroides na mitologia: Herzog e as pedras do espaço, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/os-asteroides-na-mitologia-herzog-e-as-pedras-do-espaco/. Acesso em: 23/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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