A Cuca, do folclore ao Sítio do Pica-Pau Amarelo

Quem não teve medo da Cuca? Cuidado! Ela é um bicho-papão do folclore brasileiro, um jacaré bípede que aterroriza as crianças à noite. Pelo menos, é assim que você deve se lembrar dela. É certo que a Cuca ganhou fama com a obra de Monteiro Lobato, estrelando sua adaptação para o cinema de 1953, a série de TV de 1977 e seu reboot de início dos anos 2000. Mas, ao contrário do que muitos pensam, ela não surgiu dos livros, nem de uma sinistra canção de ninar. Afinal, de onde veio a Cuca como nós a conhecemos? Quais as raízes mitológicas desse monstro? Vamos descobrir!

Origens folclóricas da Cuca

Contemporâneo de Monteiro Lobato, o antropólogo Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) separou o folclore brasileiro em dois grandes grupos: “mitos primitivos e gerais” e “mitos secundários e locais”. O primeiro engloba várias manifestações populares, como as histórias de “angústia infantil”, por exemplo. A Cuca faz parte desse grupo, porque nas lendas ela é uma bruxa ou um bicho-papão que rapta crianças e as leva para a caverna onde vive, com o propósito de devorá-las.

De acordo com Câmara Cascudo, a imagem mais comum da Cuca é a da mulher idosa, magra, de pele enrugada (ou escamosa), cabelos grisalhos, faminta de crianças malcriadas. A velhice pode ter relação com um termo do idioma nbunda, que chegou ao Brasil junto dos africanos escravizados, para os quais “cuca” era sinônimo de “avó”. Curiosamente, o termo também existe na língua tupi, na qual refere-se ao ato de engolir tudo de uma vez (com voracidade), bem como aos sons noturnos das corujas.

Canção de ninar sinistra

Ao longo do tempo, mães e pais evocam a Cuca em uma canção de ninar que atravessou gerações. A quadra, com o intuito de controlar as crianças à noite, chegou até os dias de hoje pela tradição oral:

Nana nenê / que a Cuca vem pe­gar / papai foi à roça / mamãe saiu também.

A canção sugere que a criança está sozinha em casa, por isso deve ir para a cama; do contrário, a Cuca virá buscá-la. A ideia da bruxa comedora de gente evoca o canibalismo na mitologia. Também une as noções arquetípicas da mãe cuidadora (aquela que canta a canção) e da mãe devoradora (o monstro em si). Nesse sentido, a Cuca assemelha-se às personagens folclóricas de outras partes do mundo. É o caso da Baba Yaga, do Leste Europeu, da Lâmia grega e da bruxa de João e Maria, por exemplo. No conto de fadas, a bruxa atrai as crianças famin­tas até sua casa, feita de açúcar e pão de mel, para então devorá-las.

A Cuca no folclore ibérico

Mas de onde vem a imagem de jacaré, que logo associamos à Cuca? A resposta está no folclore ibérico. Na tradição re­ligiosa hispânica, principalmente na Galícia, a “Coca” é o monstro em forma de dragão exibido nas procissões de Corpus Christi, que evocam o martírio de Jesus. São Jorge enfrenta o monstro durante a popular Festa da Coca. Já as tradições portuguesas do Minho (na região norte do país) se apropriaram desse personagem folclórico, a quem deram o nome de “Santa Coca”.

Portanto, as origens ibéricas da Cuca nos ajudam a entender de onde vem o jacaré bípede monstruoso. Foi essa a imagem que a TV brasileira imortalizou na memória de várias gerações de crianças que assistiram à série Sítio do Pica-Pau Amarelo. Talvez a inspiração para os cabelos loiros do monstro venha d’A Cuca (1924), de Tarsila do Amaral. A artista descreveu essa pintura “bem brasileira” como “um bicho esquisito, no meio do mato, com um sapo, um tatu, e outro bicho inventado”.

Sítio do Pica-Pau Amarelo

Na literatura brasileira, a Cuca teve sua estreia em O Saci (1921), volume um da coleção Sítio do Pica-pau Amarelo. A obra de Monteiro Lobato, com 23 volumes publicados entre 1921 a 1947, gira em torno do Sítio, espaço que valorizava os aspectos positivos da vida no campo. Em outras palavras, o contato com a natureza, a abundância de alimentos e o tempo disponível para o lazer.

A proprietária do Sítio é Dona Benta, mulher branca e instruída, de autoridade sábia e gentil. Seus netos são os primos Pedrinho e Narizinho, que passam as férias escolares com ela. Às suas aventuras juntam-se a boneca de pano Emília e o espigão Visconde de Sabugosa, que ganham vida como uma menina esperta e um sujeito erudito. No Sítio, também há trabalhadores negros, descendentes de escravizados: Tia Nastácia, cozinheira afetuosa e resignada com sua condição, e o caseiro Tio Barnabé, detentor da sabedoria popular. Ele sabe tudo sobre os seres folclóricos da região, entre os quais destaca-se a Cuca.

Os desafios da Cuca em O Saci

Na obra de Monteiro Lobato, a Cuca só aparece em O Saci. Esse livro de 1921, relançado posteriormente com revisões, acompanha as férias escolares de Pedrinho e Narizinho e suas aventuras no Sítio. Tudo começa depois que o Tio Barnabé conta a história dos “sacis”, seres mágicos da floresta que vivem aprontando travessuras. O curioso Pedrinho então decide caçar um saci, e põe uma arapuca na floresta. Quando seu plano enfim dá certo, ele e a criatura se tornam amigos. Juntos, decidem salvar Narizinho das garras da Cuca, que sequestrou a garota e a levou para o seu covil.

Desse ponto em diante, as versões da história variam: Narizinho ora é de­vorada, ora é transformada em pedra pela Cuca. Depois que Pedrinho e o Saci a dominam, mas sem derrotá-la, a Cuca lança vários desafios em troca da libertação de Narizinho. Com isso, os heróis precisam enfrentar os perigos da floresta, onde encontram outros personagens do folclore brasileiro. A influência da mitologia grega parece evidente aqui, já que os desafios da Cuca nos remetem aos Doze Trabalhos de Hércules. Há também o poder do monstro de petrificar suas vítimas, um atributo da górgona Medusa.

As muitas formas da Cuca

Nas diferentes edições de O Saci, a Cuca variou de uma anciã (o cinema também a retrataria assim) a um jacaré monstruoso (imagem popular na TV). Mas as variações não significam necessa­riamente que ela foi uma personagem de menor importância. Pelo contrário, sua forma camaleônica reflete a liberdade de mudar suas características, coisa que Monteiro Lobato não faria com personagens centrais como a boneca Emília, por exemplo. Tais mudanças o ajudaram a criar uma mito­logia fantástica, com base na apropriação de várias referências do folclore brasileiro e da mitologia mundial.

Ao lado do Saci, a Cuca teve o papel de apresen­tar ao público leitor o mundo mágico do Sítio. Na série de TV, a Cuca se tornou personagem recorrente, com protagonismo em vários momentos. Produção da Rede Globo para a TV aberta (exibida tanto pela Globo quanto pela TV Educativa do Rio de Janeiro), a série durou 10 temporadas e teve vários reboots. Desde então, a Cuca chegou ao universo cultural do funk e se firmou no imaginário popular. Em 2020, destacou-se novamente na série de fantasia Cidade Invisível, da Netflix. Nela, um mundo de seres folclóricos existe ao mesmo tempo que o nosso.

* Este artigo é a síntese de um estudo em co-autoria com Laura Loguercio Cánepa, publicado na revista Narratio – Estudos de Comunicação, Linguagens e Mídias, da Universidade São Judas Tadeu.

Referências

“Cuidado com a Cuca que a Cuca te pega: sobre a apropriação queer de uma personagem folclórica e televisiva brasileira” (Narratio, 2020), por Laura Loguercio Cánepa e Lúcio Reis Filho.

“Aluísio Almeida – Cuca” (Colecionador de Sacis, 15/12/2017), por Andriolli Costa. Em: https://colecionadordesacis.com.br/2017/12/15/aluisio-almeida-cuca-tutu-maramba1945/.

“Da Isbá na floresta gélida à caverna tropical: aproximações entre as personagens Baba Iaga e Cuca” (USP, 2012). Dissertação de Majori Claro.

Dicionário da Mitologia Grega e Romana (2011), de Pierre Grimal.

Geografia dos mitos brasileiros (1983), de Câmara Cascudo.

O Saci (ed. 2017), de Monteiro Lobato.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. A Cuca, do folclore ao Sítio do Pica-Pau Amarelo, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/a-cuca-do-folclore-ao-sitio-do-pica-pau-amarelo/. Acesso em: 02/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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