The Last of Us: os infectados e a mitologia

O que chama a atenção em The Last of Us é, sem dúvida, o visual aterrador dos infectados. Quem conhece o game vai se lembrar dos monstros grotescos com cabeça de repolho. Mas, no universo da franquia, há vários tipos de zumbis: dos recém-infectados, ainda com aparência humana, aos mutantes encobertos de pólipos. Todos, no entanto, agem da mesma forma: predadores ferozes, atacam os seres humanos e assim os contaminam, através da mordida. Além da influência de filmes e séries de zumbis que vieram antes, conforme vamos descobrir, há uma relação com os mortos-vivos da mitologia nórdica.

O mundo de The Last of Us

The Last of Us é um dos games mais aclamados da atualidade, tanto pelos jogadores quanto pela crítica. Ele foi lançado pela Naughty Dog em 2013 e, desde então, vem conquistando prêmios e fãs no mundo todo. O enredo se passa em um mundo pós-apocalíptico, depois que uma pandemia fúngica dizimou a raça humana, transformando-a em hordas de zumbis grotescos. A civilização por fim sucumbiu, e dela restaram apenas os monstros e alguns poucos sobreviventes. É o caso do protagonista Joel, que percorre um país devastado e violento com o propósito de escoltar a jovem Ellie.

O game renovou as tradicionais histórias de zumbi, sobretudo nas causas da infecção, na representação do monstro e na distopia eco-crítica. (Nesse mundo, a sociedade humana sucumbiu, mas a natureza floresceu novamente). Além disso, The Last of Us combina ação, aventura e drama de forma eficaz. A jornada de Joe e Ellie é repleta de perigos, desafios e dilemas morais, mas também de ternura e amizade. Fora isso, o enredo é bastante simples. Contudo, ele se desenrola por meio de uma jogabilidade fluida e cativante, ao passo que evoca um medo próprio da ficção apocalíptica: “e se isso realmente acontecesse?”. O sucesso do game rendeu uma sequência ainda mais ambiciosa, lançada em 2020, e uma adaptação seriada pela HBO, em 2023. Em tempos de pandemia, a trama não perde a atualidade.

Zumbis vs. Infectados

Ainda que existam no imaginário de diferentes culturas, os mortos-vivos se manifestam de várias formas. Exemplos bem conhecidos são os vampiros do Leste Europeu, o ghoul das lendas árabes, o corpo seco do folclore brasileiro e até mesmo os fantasmas. Por sua vez, aqueles que chamamos de “zumbis” vêm da mitologia e da religião afro-americana, principalmente do vodu caribenho. Ao longo do tempo, a literatura, o cinema e a cultura pop se apropriaram desse personagem, afastando-o de suas raízes míticas e religiosas. Assim, os zumbis se tornaram vetores e representações de doenças.

Esse novo tipo de zumbi, que também chamamos de “infectado”, é ser autônomo e máquina implacável de matar. Em síntese, é um cadáver que volta à vida como um andarilho pútrido e decadente; tem, portanto, forma humana mas nunca retornará ao seu estado original de humanidade. Logo que se contamina e se transforma, através da morte, o zumbi se volta contra as pessoas “normais”, as quais atacam e matam com selvageria. Os infectados de The Last of Us, por exemplo, são obstinados e crescem rápido em número conforme espalham sua doença, criando assim mais zumbis.

A infecção e o perigo do contágio

The Last of Us segue o roteiro da maioria dos filmes de zumbis. Neles, uma doença se espalha e em pouco tempo ganha proporções pandêmicas. As pessoas então começam a se transformar em mortos-vivos grotescos, que atacam e matam. Seu método é morder as vítimas antes de comê-las parcialmente, garantindo assim que elas também sejam infectadas. Essa necessidade instintiva tem relação com a psicologia do canibalismo. Afinal, o assassinato, a mutilação e o ato de consumir seres humanos não ocorrem por razões de carência de proteína, nem como resultado de necessidade; tampouco por razões simbólicas ou ritualísticas. Seus únicos objetivos são, portanto, matar, comer e infectar outras pessoas.

Por trás desse roteiro, os zumbis representam o medo da regressão a um estado de atrocidades e violência irracional. Evocam também os medos das doenças, principalmente das de propagação epidêmica. À ideia de contágio, presente desde o início nos filmes e séries de zumbis, as produções recentes deram nova dimensão com o vírus (ou fungo) que foge do controle.

O zumbi fúngico de The Last of Us

Pelas mãos do escritor Richard Matheson, Eu Sou a Lenda (1954) popularizou o tema do “último homem na Terra”. O livro segue os passos de um homem que vive em um mundo pós-apocalíptico, depois que uma praga transformou seus semelhantes em criaturas vampíricas. O clássico filme A Noite dos Mortos-Vivos (1968), de George Romero, trouxe os zumbis cambaleantes comedores de carne humana. Resident Evil (1996) adicionou a epidemia viral e as mutações genéticas, que se tornaram parte integrante da representação dos zumbis contemporâneos. The Last of Us se assenta nessas bases para inovar: faz do apocalipse uma pandemia fúngica sem precedentes, com hordas de infectados grotescos.

Em princípio, os infectados de The Last of Us se assemelham aos de Resident Evil. Eles são andarilhos claudicantes, irracionais e violentos, com as roupas esfarrapadas e os corpos em decomposição. Conforme vimos, seu único objetivo é matar. Em contraste, a causa da pandemia não é um vírus, mas o fungo cordyceps, que se instala na base do cérebro e assume controle do hospedeiro. Seus corpos são mofados e cobertos de pólipos escamosos. No estágio mais avançado de infecção, seus crânios se abrem em carapaças fúngicas que encobrem a face, deixando à mostra a mandíbula cheia de dentes.

A mente de colmeia dos infectados

Na série The Last of Us (HBO, 2023) os infectados têm uma conexão perpétua entre si. Afinal, nessa adaptação para a TV o contágio também afetou o solo, criando assim uma grande rede fúngica. Em razão disso, o menor contato com o micélio do fungo é capaz de atrair uma horda inteira em questão de segundos. Essa é uma mudança importante do game, que faz dos infectados uma coletividade, isto é, seres que têm consciência do todo, não de individualidade. Assim como os insetos, eles ganham comportamento de enxame e “mente de colmeia”. Esta é uma característica dos mortos-vivos de Guerra Mundial Z (2013) e dos Borgs, espécie de zumbis cibernéticos de Star Trek.

Relação com a mitologia

Além da influência dos filmes e games anteriores, os infectados de The Last of Us nos fazem voltar às tradições antigas. Nas sagas da mitologia nórdica, os draugr são cadáveres de guerreiros vikings que ressuscitam dos montes funerários. Seres aterrorizantes, de pele azul ou gangrenosa, anunciavam-se pelo fedor de carne podre. Assemelham-se aos zumbis da cultura pop (de The Last of Us e Game of Thrones, por exemplo), pois vagam pelo mundo em busca de suas vítimas. Dizia-se também que o único objetivo desses monstros sedentos de sangue era matar os vivos a fim de saciar sua fome.

O exemplo mais célebre e aterrorizante de um draugr é de Glámr, da Saga de Grettir. Embora não o chamem de draugr no texto (apenas de “troll”), ele desempenha muito bem esse papel. Lenhador e cuidador de ovelhas sueco, Glámr não participa do jejum natalino, por descrença, fome ou teimosia. No dia em que ele não volta do trabalho, um grupo sai para procurá-lo. Na noite seguinte, ele retorna e começa a matar os seres vivos ao seu redor, que despertam como draugr. Aprendemos que, provavelmente, foi isso que aconteceu com o pobre Glámr.

Os draugr têm grande força física e são indestrutíveis: a única forma de matá-los é por meio de decapitação e queima do corpo. Além disso, a condição desses monstros era aparentemente contagiosa, já que suas vítimas voltariam à vida como um deles. De acordo com algumas versões do mito, eles tinham poderes mágicos, como a metamorfose. Os infectados de The Last of Us têm tudo isso: a aparência grotesca, a força física, a sede de sangue, a podridão, a pestilência e, inclusive, a sina de se transformar. Por meio da mutação genética, tornam-se seres ainda mais violentos e aterrorizantes.

Referências

“The journey to nature: The Last of Us as critical dystopia” (Digital Games Research Association, 2016), por Farca Gerald e Ladevèze Charlotte. Em: www.digra.org/digital-library/publications/the-journey-to-nature-the-last-of-us-as-critical-dystopia/.

Dicionário de mitologia nórdica (2015), de Johnni Langer (org.).

“Introduction Eco-dystopias: Nature and the Dystopian Imagination” (Critical Survey, 2013), por Rowland Hughes e Pat Wheeler. Em: https://www.jstor.org/stable/42751030.

The Zombie Movie Encyclopedia (2010), de Peter Dendle.

Gospel of the Living Dead: George Romero’s Visions of Hell on Earth (2006), de Kim Paffenroth.

Book of the Dead: The Complete History of Zombie Cinema (2005), de Jamie Russell.

“The Draugr” (Scandinavian Archaeology, 17/10/21), por Molly Wad.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. The Last of Us: os infectados e a mitologia, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/os-zumbis-de-the-last-of-us-e-suas-origens/. Acesso em: 28/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

Uma resposta

  1. Não conhecia a Saga de Grettir. Gostei da relação ente essa saga e The Last Of Us. Obrigado, professor Lucio Filho.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *