Os zumbis, do folclore afro-caribenho ao cinema

Os zumbis que todos conhecem são os mortos-vivos monstruosos que comem carne humana. Eles estão por toda a parte, nos filmes de horror, nos games, nos quadrinhos e nas séries de TV. Mas nem sempre foi assim. Vamos descobrir as origens do termo “zumbi”, suas relações com a religião afro-caribenha do vodu e as representações de um personagem folclórico no cinema dos anos 1930 e 1940.

A morte e os mortos-vivos na antiguidade

Os mortos-vivos fazem parte da mitologia de várias culturas, desde a antiguidade mais remota. Os mitos, que Mircea Eliade chama de histórias sagradas, são ricos, complexos e se abrem para diferentes interpretações. Assim sendo, refletem um estado primordial das sociedades, nas quais permanecem vivos, dando justificativa e base para as atividades humanas. As histórias fabulosas, que deles se originam, surgem com o propósito de dar sentido ao mundo, ou seja, explicar fenômenos que são, em princípio, inexplicáveis. Um deles é, sem dúvida, a morte e o que ocorre depois dela. Daí vêm os mortos-vivos.

Por exemplo, as primeiras histórias de vampiros podem ter origem nos mitos do antigo Egito. No folclore árabe havia os ghouls, seres carniceiros que rondavam as sepulturas à noite. E, na mitologia nórdica, dizia-se que os mortos formariam um exército no Ragnarök (a batalha do fim do mundo). Havia também os draugr, cadáveres de guerreiros vikings que ressuscitavam feito zumbis dos montes funerários. Seres aterrorizantes, de pele azul ou gangrenosa, eles se anunciavam pelo fedor de carne podre.

Mortos-vivos na Idade Média e na modernidade

A crença de que as almas podem retornar para assombrar os vivos era muito comum na Europa feudal. Acreditava-se, então, nos revenants (retornados), fantasmas ligados eternamente às cenas de assassinato (fossem eles as vítimas ou os próprios assassinos); e nos taxim, termo que definia os cadáveres cuja alma não encontrava a paz eterna. Posteriormente, como toda a exaltação da morte durante o Romantismo, os mortos que se erguem da tumba tornaram-se um tema importante na literatura do século XIX; tanto quanto os passeios pelos cemitérios góticos na calada da noite.

Por sua vez, Frankenstein ou o Prometeu Moderno (1818) já nasceu como precursor das modernas histórias de zumbis, na crista da onda “neogótica” vigente. O monstro de Mary Shelley (1797-1851), no entanto, é obra não de feitiços vodu ou de um vírus desconhecido, mas da ciência com intenções divinas de um anatomista; ele insufla vida em um corpo feito de partes de cadáveres, que então escapa e herda seu nome. A exaltação da morte também é característica na obra de Edgar Allan Poe (1809-1849), em seu universo de enterrados vivos, espectros e ressuscitados. O conto The Facts in the Case of M. Valdemar (1845), por exemplo, trata de experiências no limite entre a vida e a morte. Posteriormente, H. P. Lovecraft (1890-1937) também escreveria vários contos sobre mortos-vivos.

Os zumbis do folclore afro-caribenho

Decerto, uma representação singular do morto-vivo vem da mitologia africana e afro-americana. Sabe-se que os sacerdotes africanos levados ao Haiti, no contexto da escravidão, fundaram uma religião sincrética cujos ritos e práticas dependem intrinsecamente da cooperação com os espíritos. De acordo com Peter Dendle, o termo “zumbi” tem relação íntima com essa religiosidade, já que o seu significado, de origem quimbunda, refere-se à ideia de morto que se ergue da cova. Ele implica, portanto, na relevância da ideia de ressureição dentro da religião afro-caribenha do vodu.

Conforme explica Luciano Saracino, os zumbis vodu são tanto os cadáveres reanimados por espíritos, dos quais o bokor (sacerdote) se utiliza para benefício pessoal; quanto pessoas vivas, em transe hipnótico devido a poções e unguentos de origem animal ou vegetal. Em ambos os casos, os zumbis andam cambaleantes, realizam ações de forma mecânica, têm olhar fixo e morto, e falam com a voz anasalada. No entanto, a relação entre as religiões de matriz africana e a feitiçaria visando o malefício é problemática. Esse discurso, vulgarmente propagado pelo cinema comercial anglófono, traz um olhar eurocêntrico que deforma a realidade cultural afro-caribenha, ignorando suas nuances e práticas.

Os primeiros filmes de zumbis (1930-1940)

Os zumbis vodu se popularizaram no cinema dos anos 1930 e 1940. Filmes como White Zombie (1932), Ouanga (1936), Revolt of the Zombies (1936) e I Walked with a Zombie (1943) tratam do racismo por meio da relação de submissão e domínio entre os zumbis e aquele que os controla. O primeiro deles, White Zombie, deu início a esse subgênero do horror que inclui feitiços, tambores e rituais, enquanto que o papel do zumbi étnico é mais o de complementar um vilão humano. Em outras palavras, o zumbi vodu é mais um objeto de horror do que uma ameaça real para os protagonistas. Essa imagem certamente ajudou a perpetuar estereótipos racistas sobre as populações negras e as culturas não-hegemônicas.

Até então, o zumbi tinha laços mais fortes com suas “raízes folclóricas”, ora com a religião afro-caribenha, ora com a mitologia egípcia. No filme britânico The Ghoul (1933), por exemplo, Boris Karloff interpreta o Professor Henry Morlant, egiptólogo obcecado com a imortalidade, que a alcança mediante um contrato com Anúbis, o deus dos mortos da mitologia egípcia. Mas os planos dão errado, e Morlant volta à vida como um zumbi a fim de se vingar daqueles que violaram a sua tumba.

A fase de transição (1950-1960)

Os anos 1950 e 1960, por sua vez, marcam uma estranha fase de transição. Isso porque o zumbi, embora perca os laços com sua versão étnica das décadas anteriores, passa a sofrer certa crise de identidade. A partir de 1950, usa-se o termo quimbundo para definir todo tipo de monstro, por exemplo: os marcianos de Zombies of the Stratosphere (1952); os seres aquáticos de Zombies of Mora-Tau (1957); os jovens de classe média chapados de Teenage Zombies (1959); os peixes mutantes radioativos de The Horror of Party Beach (1964); e os androides cibernéticos de The Astro-Zombies (1968). Todavia, por mais bizarras que pareçam, há certa coerência nessas representações, pois criou-se a ideia de que mortos-vivos não têm mente ou alma. Diante disso, o homem branco poderia executá-lo livremente.

O morto-vivo moderno (anos 1960)

Ainda que os monstros sejam lugar-comum na história do cinema, Dendle vê nos primeiros filmes de Hollywood um tabu que impedia mostrar cadáveres em decomposição. Nesse sentido, os filmes dos anos 60 foram um divisor de águas, principalmente para o gênero do horror. The Last Man on Earth (1964), adaptação do livro Eu sou a lenda (1953) de Richard Matheson, seria responsável por abrir a estrada para os temas mais sombrios que emergiram no final daquela década. O morto-vivo moderno – isto é, o zumbi como o conhecemos hoje – surgiria anos mais tarde, nesse mesmo contexto.

*Este texto é uma síntese da primeira parte do artigo “Dos cânones sagrados às alegorias profanas: a laicização do zumbi no cinema”, de Lúcio Reis Filho e Alfredo Suppia, publicado na Mneme – Revista de Humanidades, no primeiro semestre de 2011.

Referências

Zombie evolution: el libro de los muertos vivientes en el cine (2009), de J. M. Cueto.

Zombies! Una encyclopedia del cine de muertos vivos (2009), de Luciano Saracino.

História da morte no Ocidente (2003), de Philippe Ariès.

The zombie movie encyclopedia (2001), de Peter Dendle.

Encyclopedia of things that never were (1985), de Michael Page e Robert Ingpen.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Os zumbis, do folclore afro-caribenho ao cinema, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/os-zumbis-do-folclore-afro-caribenho-ao-cinema/. Acesso em: 11/05/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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