Mitologia Africana e Afro-Americana

Vodu não é para jacu! Para fugir dos preconceitos que profanaram e marginalizaram culturas não-europeias ao longo dos séculos, vamos explorar a mitologia africana e as religiões que nasceram dela? Tudo começou na África, onde os mitos são a base da cultura, e a religiosidade é uma ponte entre o plano terreno e o espiritual. A conexão entre esses dois mundos depende muito da crença nos seres sobrenaturais e do contato com os espíritos através de práticas como xamanismo, possessões e ritos de passagem. Séculos atrás, quando os povos africanos foram escravizados e forçados a deixar suas terras, suas culturas chegaram com eles até as Américas, onde se adaptaram e se transformaram em novas religiões híbridas, como forma de resistência. Além das religiões nativas, que cultuam os ancestrais e os elementos da natureza, destacam-se o sincretismo do Vodum e do culto aos Orixás. Mas não é só isso! Vamos descobrir as ricas expressões da cultura africana, das artes aos meios audiovisuais até a música, do blues ao funk! E ainda vamos conhecer suas manifestações na cultura pop afro-americana e afro-brasileira!

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A religiosidade ancestral africana

O continente africano é rico em mitos, que se dividem em duas categorias: os do Egito antigo e as mitologias variadas e pungentes da África subsaariana, das quais sabemos pela tradição oral. É a segunda categoria que vamos explorar aqui. Podemos dizer que as religiões são vivas no continente, e que os mitos estabeleceram as bases culturais para o modo de vida dos seus povos. Decerto, seu impacto no cotidiano ainda é visível. Além disso, por serem fluidas e adaptáveis, as narrativas orais se transferiram facilmente para além das fronteiras. Na América, lançaram as bases de novas religiões híbridas e sincréticas.

As religiões nativas

Confinadas a estirpes, tribos e lugares particulares, as religiões nativas são a princípio de pequena escala. Elas não são uniformes, mas algumas generalizações são possíveis. Talvez sua característica mais recorrente seja a crença em um número imenso e ativo de seres espirituais.

Tais seres, sejam espíritos, deuses e deusas, influenciam com seu poder tudo o que diz respeito à vida. Isto é, a natureza (nas coisas espiritualmente significantes como a pantera, a árvore e a tempestade, por exemplo), os homens (o curandeiro que manipula as forças do bem e o feiticeiro que tem o poder de causar o mal) e outros domínios (no submundo onde vivem os monstros ou nas esferas mais elevadas, onde estão os ancestrais).

A ponte entre dois mundos

A fim de fazer pedidos, obter poderes mágicos, prever o futuro e adquirir sabedoria, os praticantes das religiões nativas estabelecem contato com os seres sobrenaturais. Igualmente, devem encontrar maneiras de repelir ou aplacar aqueles que lhes queiram fazer mal.

Com efeito, a ponte entre o mundo terreno e o além-mundo tem dois caminhos: a possessão espiritual e o xamanismo, que envolvem, respectivamente, rituais de exorcismo e obtenção de poderes.

Em primeiro lugar, é através da possessão que os espíritos invadem certos receptáculos humanos e se apossam deles. Por vezes de índole má, tais seres fazem as pessoas ficarem doentes ou loucas. Os possuídos, então vítimas de sofrimento, devem buscar a libertação nos rituais de exorcismo.

Em contraste com essa dinâmica, há o xamanismo, prática religiosa que pressupõe a interação de um praticante (xamã) com o mundo espiritual. Seu objetivo é direcionar espíritos ou energias espirituais para o mundo físico com o propósito de cura, adivinhação ou assistência.

A importância do ritual

Apoiando-se na tradição, as religiões nativas são primordialmente religiões da prática e da atividade. Isso porque são fortes em rituais e fracas em crenças abstratas ou teologia. Assim sendo, a importância dos ritos de passagem é fundamental. Tais ritos, eventualmente muito bem elaborados, simbolizam transições de um estágio da vida para outro. Nascer, atingir a maturidade, casar-se e morrer, por exemplo.

A maioria dos ritos de passagem foca no “liminar” (do latim limen), estágio de transição que indica “entrada” ou “começo”, pois é cheio de incertezas. Nas religiões nativas, a iniciação para a maturidade e os funerais são os ritos mais importantes. Isso porque, sem eles, as passagens não se realizam. Os ritos ajudam a pessoa a dar ordem e sentido à vida, ao passo que são realizados da mesma maneira há muitas gerações.

Os mitos

O mito da África oriental de En-kai criando gado e dando-os aos masai estabeleceu as fundações culturais para o modo de vida daquele povo. Os mitos poéticos dos san bosquímanos do deserto de Kalahari, na África Meridional, fala dos feitos da Raça Primordial de seres que são, ao mesmo tempo, homem e animal. Narradas durante os ritos, essas histórias sagradas nascem de questões existenciais com o propósito de dar sentido ao mundo. Por que morremos? Este é um bom exemplo, e a resposta está em um mito do povo Ibo, do sudeste da Nigéria (na África Ocidental).

De acordo com o mito, Chuku, o Grande Espírito, criou o mundo e a humanidade. Ele, então, mandou um cachorro até as primeiras pessoas para lhes dizer que, se alguém morresse, deveriam colocar seu corpo sobre a terra e espalhar cinzas por cima, e essa pessoa voltaria à vida. Mas o cachorro ficou vadiando pelo caminho, e então Chuku mandou um carneiro com a mesma mensagem.

No momento em que o carneiro chegou, tinha esquecido o que deveria dizer. Confundiu toda a mensagem e por fim disse que, se alguém morresse, deveria ser sepultado sob a terra. Quando o cachorro finalmente chegou, era tarde demais. Ninguém acreditava nele. “Foi-nos dito que deveríamos enterrar os mortos, e é isso que faremos”, disseram os primeiros homens. E assim a morte chegou à humanidade.

Forças do Bem e do Mal

As religiões nativas permitem lidar com aspectos mais obscuros da vida, ao mesmo tempo que realçam a necessidade de harmonia com o mundo natural. Em outras palavras, seus praticantes descobrem fazer parte da natureza, e que essa comunhão exige respeito ao meio ambiente – em nível de culto. Além disso, aprendem a louvar os ancestrais pelo que são e pelo que foram. Essa visão harmoniosa contém muito de sua sabedoria.

Nas religiões nativas há um código de símbolos e ações. Através deles, pode-se não só fazer algo contra os males do mundo, como também compreende-se que suas causas, muitas vezes, estão além da vontade humana. Mas, diante das forças responsáveis pelos eventos ruins (doença, fome, dor, ferimento), os meios de combate-las podem se tornar tão pessoais quanto as suas causas. Nesse sentido, a luta do Bem contra o Mal ganha contornos de um combate real, isto é, algo que estaria realmente acontecendo. Ele então é narrado com alusões àqueles que participam da guerra – espíritos, deuses, feiticeiros, demônios.

Aspectos das religiões africanas e afro-americanas

Sabemos que as narrativas orais são fluidas e adaptáveis. Assim sendo, os deuses e as tradições dos povos do oeste da África, como os iorubás e os fons, viajaram com os africanos escravizados para o Novo Mundo, onde formaram as bases de novas religiões. Por exemplo, as histórias cômicas e violentas do trapaceiro akan-ashanti Ananse, que é homem-aranha, tão comuns no oeste da África, chegaram ao Caribe e aos Estados Unidos.

Também podemos citar o culto aos Orixás, dos iorubás, e o culto aos Voduns, dos geges. O primeiro tem forte ligação com a noção de família. O Orixá seria, portanto, um ancestral divinizado. Já a religião dos Voduns diz mais respeito à coletividade e não ao indivíduo. Nesse sentido, o Vodum surge como espécie de anjo da guarda de uma comunidade, seja ela uma família, uma aldeia ou um reino. Mas, embora haja diferenças entre o culto aos Orixás e aos Voduns, há semelhanças e pontos de contato.

Os Orixás e o Vodum

A divindade Vodum Legbá, ou Papa Legbá, é equivalente ao deus iorubá Exu, dos Orixás. Ele, que tem como atributo ser o protetor e o mensageiro, informa sobre qualquer situação a fim de proteger sua comunidade. A posição do inimigo em tempo de guerra, por exemplo.

Exu é o intermediário, o falo, o guardião de uma casa de culto. É ele quem leva as mensagens para os Oduns e os Orixás. Responsável pelo sexo do homem tanto quanto da mulher, ele tem forte relação com o corpo humano. Por influência da Igreja católica, o senso comum costuma relacionar Exu ao Diabo. Por conseqüência, os culto aos Voduns e aos Orixás foi muito marginalizado no Ocidente, e ainda é alvo de perseguições e intolerância religiosa. O Vodum quase sempre aparece associado ao Mal e à feitiçaria, e raramente o vemos em conformidade com suas expressões religiosas originais, ainda vivas no Benin, no Maranhão e na Bahia.

As religiões afro-brasileiras

Podemos encontrar as principais raízes dos cultos religiosos afro-brasileiros no Benin e na Nigéria. O Candomblé, na Bahia, o Xangô pernambucano, o Tambor-de-Mina do Maranhão e os batuques de Porto Alegre têm forte ligação com as crenças religiosas dos povos Iorubá e Fon.

Nas religiões afro-brasileiras, os elementos da natureza têm grande importância. O arco-íris, deus do frescor e benfeitor da humanidade, é associado a Lissá; as chuvas e o trovão, a Xangô ou Heviossô; os rios e o mar a Oxum e Iemanjá; a serpente é respeitada como Dan (elemental). Se não há chuva, as pessoas imploram ao Arco-Íris, que entra em contato com Heviossô, o deus do trovão, e ele então faz chover.

Referências

O livro da mitologia (2018), por Philip Wilkinson e outros.

A África e os africanos na formação do mundo atlântico: 1400-1800 (2004), de John Thornton.

Na rota dos Orixás (dir. Renato Barbieri, 1998).

O livro ilustrado dos mitos (1997), de Neil Philip.

Para entender as religiões (1985), de John Bowker.